Ele já havia enfrentado situações extremas. Mas nada, porém, se comparava àquilo
A história findava e recomeçava na cabeça de Pedro dia após dia, desde a sua chegada a Paris, naquele princípio de inverno, em dezembro de 1864. Quando deixou San Jose de Guadalupe, na Califórnia, para atender um último pedido da mãe, achou que se tratava apenas de um capricho da falecida. Os dois já não se viam desde 1848, quando ele decidiu buscar outra vida, longe da França. Nos últimos anos, a relação com Madame de Saisset havia se deteriorado bastante porque Clémence não aprovava o seu casamento com a californiana Maria de Jesus, viúva e já mãe de três filhos.
As chantagens emocionais e acusações dirigidas à esposa eram constantes. Pedro limitava-se a responder que, se a mãe o amava, deveria respeitar quem ele havia escolhido para viver. “Meu querido filho, uma mãe não pode amar aquela que a priva da esperança de rever seu filho novamente, e o torna tão indiferente a ela desde o seu casamento, um casamento que está longe de satisfazer o seu coração de mãe (...) Enfim, não pensemos mais nesse mal incessante, que sempre faz meu coração sangrar.” ¹
Clémence morrera em abril, aos 64 anos, vítima de um câncer no útero, o qual ela tentou, inicialmente, curar com o auxílio de uma parteira-curandeira, mulher que passou a gozar de um certo prestígio entre as senhoras da alta classe parisiense porque teria, supostamente, curado a Imperatriz Eugênia de Montijo, esposa de Napoleão III, dos ditos males tipicamente femininos. Seis meses depois, os sintomas persistiam e eram ainda piores. Quando resolveu finalmente procurar um especialista, já não havia mais o que fazer.
O Dr. Denis advertiu o filho Ernest que a morte de Clémence era iminente e poderia chegar com muita dor ou de repente. Madame de Saisset, ao menos, foi beneficiada com a segunda hipótese. Faleceu na madrugada de 4 de abril. “No domingo, 3 de abril, ela recebeu a visita dos amigos e do meu tio. Ela se sentia melhor e estava conversando. Manteve sua presença de espírito o dia todo, até às 10 horas da noite. Depois disso, começou a delirar e todos os nossos nomes vieram aos seus lábios. Ela morreu sem dor, às 2 horas da manhã.” ²
Dos filhos, somente Marie Elisabeth, que havia se tornado freira, acompanhou os momentos finais da mãe. “Eu estava em Toulon, meu tio enviou-me um telégrafo e consegui chegar a tempo de levá-la para o cemitério, na quarta-feira.” ³ O corpo de Clémence foi sepultado no cemitério de Montmartre. A cerimônia fúnebre e o testamento da falecida ficaram sob a responsabilidade dos cunhados, o almirante Jean Marie Joseph Théodore Saisset, irmão de Pierre Felix, e sua esposa Adelaide, chamada por todos de Adéle. Pedro recebeu algumas joias e rendas que foram da mãe. “... em poucos dias, o testamento será aberto e o próximo correio lhe informará sobre as vontades da nossa pobre mãe” 4 , comunicava a carta de Marie Elisabeth.
No testamento, Clémence deixou explícita sua vontade de que o filho fosse pessoalmente a Paris receber o tal envelope. Pedro, a princípio, relutou em fazer a longa viagem. Mas a morte da mãe foi seguida pela perda da irmã, vitimada por um câncer de mama. Marie Elisabeth, ou irmã Maria, chegou a fazer uma cirurgia de remoção do seio em novembro de 1863, a qual rendeu-lhe falsas esperanças e muita dor. Ela faleceu em 31 de julho do ano seguinte, aos 38 anos de idade, na congregação do Sagrado Coração, em Angoulême.
Agora, restavam somente ele e o irmão. No decorrer de 1864, Ernest escreveu-lhe inúmeras cartas pedindo que fosse a Paris, mesmo que para uma visita rápida. Além de cumprir a última vontade da mãe, ele queria abraçar o irmão mais uma vez. Já não se viam desde 1847. Pedro deixou São Francisco no dia 22 de outubro, rumo ao porto do Havre. Fazia tempo bom naquele sábado. Temperatura na casa dos 20 graus, em meados do outono, era algo para se comemorar. A primeira parada foi em Nova York. De lá, outro navio para Liverpool e, finalmente, o desembarque no Havre.
Já em solo francês, seguiu de trem até Paris. Não levou muita bagagem porque, se aquela viagem oferecia algum lado bom, seria a possibilidade de renovar o guarda-roupa. Não que os alfaiates de San Jose deixassem a desejar, mas nada se comparava aos ternos e camisas feitos sob medida no Tailleur Renard, onde ele já havia escalado uma parada, segundo mostra o seu diário de viagem. Depois, algumas fotos no estúdio Denisse. Afinal, fazia 16 anos que ele não visitava a terra natal. Era necessário registrar o momento.
O plano, a princípio, era bem simples. Incluía receber o misterioso legado e retornar para San Jose. Nada mais o atraía na França. Ernest era um grande amigo e confidente, mas a condição de militar impunha-lhe longas ausências, às vezes até dois anos de navegação pelo mundo. Mesmo que voltasse a viver em Paris, raramente veria o irmão. A troca frequente de cartas bastava para manter a relação entre os dois. A mãe era outra história e nunca tiveram uma relação próxima. Algo impreciso bloqueava a conexão de ambos. Clémence nunca fora muito clara sobre a sua família, tanto materna quanto paterna, e possuía inegável capacidade de adicionar uma pitada de drama a tudo o que lhe dizia respeito, inclusive à própria morte. Seu ato final foi aquele envelope, que guardava uma descoberta perturbadora.
____________________ The envelope
He had already faced extreme situations. But nothing could compare to that
The story ended and started over in Pedro's head day after day, since his arrival in Paris, that early winter, in December 1864. When he left San Jose de Guadalupe, California, to attend to a last request from his mother, he thought that it was just a whim of the deceased. The two had not seen each other since 1848, when he decided to seek another life, far from France. In recent years, the relationship with Madame de Saisset had deteriorated considerably because Clémence did not approve of his marriage to the Californian Maria de Jesus, a widow and already mother of three children.
Emotional blackmail and accusations directed at his wife were constant. Pedro limited himself to replying that, if his mother loved him, she should respect who he had chosen to live with. “My dear son, a mother cannot love one who deprives her of the hope of seeing her child again, and makes him so indifferent to her since his marriage, a marriage that is far from satisfying her mother's heart (... ) Anyway, let's not think about this incessant evil, which always makes my heart bleed.” ¹
Clémence died in April 1864, age 64, of uterine cancer, which she initially tried to cure with the help of a midwife-healer, a woman who came to enjoy a certain prestige among Parisian upper-class ladies because supposedly cured Empress Eugenia de Montijo, wife of Napoleon III, of the so-called female ailments. Six months later, the symptoms persisted and were even worse. When she finally decided to look for a specialist, there was nothing else to be done.
Doctor Denis warned her elder son, Ernest, that Clémence's death was imminent and could come with great pain or suddenly. Madame de Saisset, at least, benefited from the latter. She died in the early hours of April 4th. “On Sunday, April 3, she was visited by friends and my uncle. She felt better, was talking easily and maintained her presence of mind all day long, until 10 o'clock at night. After that she began to rave and all our names came to her lips. She died painlessly at 2 am.” ²
Of her three children, only Marie Elisabeth, who had become a nun, accompanied her mother's final moments. “I was in Toulon, my uncle sent a telegraph and I managed to arrive in time to take her to the cemetery on Wednesday.” ³ Clémence's body was buried in the Montmartre cemetery. The funeral ceremony and the will of the deceased fell under the responsibility of her brother-in-law, Admiral Jean Marie Joseph Théodore Saisset, brother of Clémence’s husband, Pierre Felix, and his wife Adelaide, known by everyone as Adéle. Pedro received some jewelry and laces from his mother. “... in a few days, the will should be opened and the next post will inform you about the wishes of our poor mother” 4 , communicated a letter from Marie Elisabeth.
In her will, Clémence made it clear that she wanted her son to go to Paris in person to receive an envelope. Pedro, at first, was reluctant to make the long journey. But the mother's death was followed by the loss of his sister to breast cancer. Marie Elisabeth, or Sister Maria, even had a breast removal surgery in November 1863, which gave her false hope and a lot of pain. She died on July 31 of the following year, at the age of 38, in the congregation of the Sacred Heart, in the city of Angoulême.
Now, with only himself and his brother remaining, in the course of 1864, Ernest wrote Pedro numerous letters asking him to come to Paris, even if only for a quick visit. In addition to fulfilling his mother's last wishes, he wanted to hug his brother once more. They had not seen each other since 1847. Pedro left San Francisco on October 22, heading for the port of Havre. The weather was fine that Saturday. Temperatures in the mid-20s in mid-autumn were something to celebrate. The first stop was in New York. From there another ship to Liverpool and finally the arrival at Le Havre.
Once on French soil, he took the train to Paris. He didn't take a lot of luggage with him, because if that trip offered any good side, it would be the possibility of renewing his wardrobe. Not that the tailors in San Jose were lacking, but nothing compared to the suits and shirts customed at Tailleur Renard, where he had already scaled a stop, according to his travel diary. Then some photos at the Denisse studio. After all, he hadn't visited his homeland for 16 years. That moment required to be registered.
The plan, at first, was quite simple. It included receiving the mysterious legacy and returning to San Jose. Nothing else attracted him in France. Ernest was a great friend and confidant, but his military status imposed long absences, sometimes up to two years of sailing around the world. Even if he moved back to Paris, he would rarely see his brother. The frequent exchange of letters was enough to maintain the relationship between the two. Pedro’s mother was another story and they never had a close relationship. Some unexplained fact blocked their connection. Clémence had never been very clear about her family, both maternal and paternal, and she had an undeniable ability to add a dash of drama to everything that concerned her, including her own death. Her final act was that envelope, which contained such a disturbing discovery.
Excelente trabalho de pesquisa, revelando personagens pouco conhecidos no Brasil. Parabéns à colega Tina Evaristo.